quarta-feira, março 14, 2012

Entardecer

Debrucei-me no parapeito da janela e olhei para fora. Vi a rua muitos andares abaixo, observei as pessoas caminhando no lusco-fusco.
Meu olhar se voltou para o prédio do outro lado da rua e, diante dos meus olhos podia ver mais de sessenta janelas que aos poucos iam acendendo as luzes com a chegada da noite. Podia ver janelas abertas, outras fechadas, outras sem luz nenhuma, haviam aquelas com meia persiana e, aos poucos, as pessoas começavam a povoá-las.
Fui percebendo que as janelas estavam povoadas de mulheres, e todas se arrumavam: saíam nuas do banho, se vestiam e se pintavam. Invariavelmente estavam sozinhas e havia algo em comum a todos os quartos: em todos a televisão estava ligada, o que fazia daquele prédio uma cortina de retalhos luminosa.

Uma das janelas me chamou atenção. Parecia apenas uma garotinha, seu corpo era incompleto, infantil. Quando tirou a blusa, quase não tinha seios, estava diante do espelho e se pintava com cuidado. Percebi que o que achava que era uma garotinha, na verdade se tratava de uma prostituta se arrumando para começar seu turno. Ela não estava sozinha e não demorou muito pude visualizar sua companhia que passou rapidamente pela janela, era um homem. Ela continuou se pintando sem blusa e quando se virou de frente para a janela, percebi que não se tratava de uma menina e sim de um travesti.
Pensei que poderia ser um travesti morando com seu cafetão...
Quando a companhia da figura que se arrumava diante do espelho saiu do banho, para minha surpresa o vi vestido, de boina na cabeça com roupas extremamente justas e gestos bem afeminados.
Seria um casal?
Dali um tempo de observação, notei que os dois discutiam. Ela pronta para sair com sua mini saia vermelha e um top da mesma cor fazendo conjunto com o sapato reluzente. No meio da discussão, os dois se afastaram da janela.
Voltei os olhos cansados para a rua, já havia decorado como um jogo de memória, todas as peças que circulavam pela calçada em busca de programas. Abandonei o parapeito em busca de um copo de água e quando voltei, havia uma figura nova na rua. 
Além das duas mulheres reconchudas que não arranjaram programa e a outra mais ousada com formas mais delineadas que conseguiu arranjar-se com dois prováveis turistas, a figura nova era nada menos que quem eu observara o tempo todo se arrumando. Não demorou muito e logo se arranjou com uma carona após duas ou três propostas de transeuntes aleatórios.
Quando fui conferir o que havia acontecido com sua companhia, percebi que debaixo das roupas justas e da boina, morava outro travesti, que agora se pintava na frente do espelho. Por um momento largou tudo e veio até a sacada olhar a outra que havia saído: tarde demais, ela já havia entrado no carro. Ele ficou a olhar para baixo, como eu, só que eu era invisível.
Abandonei novamente minha função de observadora e me sentei na cama. Agora comia batatinha frita enquanto observava a figura do outro lado da rua que ainda buscava sua companhia lá embaixo, na rua.
De repente algo me chamou a atenção: uma quebra crescente do barulho habitual dos últimos minutos de carros acelerando e brecando na rua. Quando me aproximei da janela, ouvi gritos no ar, as pessoas estavam agitadas e ninguém sabia de onde vinham os gritos, que foram aumentando cada vez mais, assim como a expectativa para saber de onde vinham os tais gritos.
Pude distinguir duas figuras correndo sem saber ao certo qual direção seguir, corriam com toda sua energia empurrando quem estava no caminho, atravessaram a rua e sumiram a esquina. Na cola deles estava uma loira com 99% de chance de ser uma turista recentemente roubada; ela era a dona dos gritos, e corria desesperada.
Quando os dois cruzaram a rua em direção à esquina, apareceu um carro cantando pneu na contramão com a sirene ligada, eram policiais civis que chegaram segundos mais tarde e perderam os ladrões.
Provavelmente aquela turista perdera tudo que carregava, ou quase tudo... e pensei na maldade humana.
O que os homens fizeram com eles mesmos?
Minutos depois tudo voltou ao ritmo anterior: pessoas andando, prostitutas buscando clientes, cada um seguindo sua vida.
Como se nada tivesse acontecido.
Voltei para a cama e terminei o pacote de batatinhas.
Era noite.

Roma 27 di luglio'93