Estava completamente concentrada na minha
pesquisa de final de expediente, quando Mayumi me perguntou se eu estava de
bicicleta.
Voltei meus olhos em sua direção, tentando entender
sua pergunta e consegui ver, antes dela fechar a porta atrás de si, o céu
absolutamente negro.
Gentilmente ela sugeriu que eu saísse de lá, porque a chuva que estava chegando era pesada. Minutos depois, ela
se despediu e sumiu pela porta, com certeza pensando chegar logo a algum lugar
antes da chuva prometida.
Ela que falou tanto da falta de chuva no Rio
durante o carnaval, estava agora fugindo do temporal que se aproximava. Sim, ela
havia voltado para a cidade da garoa, ou dilúvios.
Sem pestanejar, desliguei meu computador e me
apressei para sair. Por precaução coloquei a capa que havia comprado no show do
Roger Waters e nunca havia usado. Não passava pela minha cabeça que eu
precisaria de uma capa de verdade e não destas capas transparentes de beira de
estádios.
Comecei a pedalar apressadamente e atravessei o
Instituto Butantan ainda seca. Os pingos mais grossos começaram a atingir o
capacete na descida em direção à Av. Vital Brasil. Logo estaria em casa, então
liguei o pisca frontal da bike e o pisca do capacete para não ser atropelada
caso a chuva apertasse.
Estava adivinhando, pois mal cheguei na Corifeu,
a chuva já entrava pela minha nuca e molhava minha pele quente. Já não podia
mais ouvir a música que tentava entrar em meu ouvido direito.
Enfrentei com coragem a avenida cheia de carros
apressados; um motoqueiro tirou uma fina muito fina de mim e olhou para trás:
ou ele estava impressionado pela minha perserverança naquele crescente de
dilúvio, ou algo estava bem errado. E estava: quando cheguei em casa, descobri
que o pisca do capacete estava desligado. Eu poderia ter sumido na névoa da
ventania e sabe-se lá o que poderia ter acontecido comigo.
Com medo dos raios, observei a incidência de vento
e contei as árvores por ali, me tranquilizei e segui firme pela avenida cheia
de luzes vermelhas à minha frente.
Em um sinaleiro, aproveitei e mudei do lado
direito da rua e fui para o lado esquerdo, que logo menos haveria uma entrada
para a praça Elis Regina, refúgio daquela avenida cheia de carros e atalho para casa. Um outro motoqueiro me olhou com compaixão e deu
espaço para que eu atravessasse na faixa e esperasse ao lado dele debaixo da
cortina grossa de pingos gigantescos.
Quando consegui desviar de uma fiorino que
nitidamente ignorava a existência de outros veículos, incluso bicicletas, e
finalmente cheguei ao acesso da Elis Regina, parecia que minha roupa pesava 200
quilos e para meu deleite, encontrei outro sinal fechado. Aproveitei para beber
água, embora parecesse redundante naquele momento visto que o único lugar que
não estava encharcado era meu estomago. Já não me importava mais com a água, queria era mesmo chega logo ao meu destino.
O sinal abriu e me vi disputando um pedaço de
asfalto com os carros. "Ei, você
não está vendo que estou encharcada e voce está seco aí dentro?”. Comecei a
lutar contra o vento na contramão. A coisa começou a ficar emocionante demais para meu gosto.
O capuz da capa Roger Waters há muito já havia
voado, e eu estava preocupada se o pisca
do capacete ainda funcionava – mal sabia eu que estava desligado. “presta
atenção! estes carros não querem nem saber, vai pra tua mão que há uma subida
poucos metros.”
Respirei fundo e, contra o vento, os carros, os
pingos pesados do temporal, me rendi. Olhei para a bike guerreira e dei um
descanso a ela e à minha alma. Porque fiz isso não sei, pois ao começar a andar
ao lado da bike, parece que o filme começou a rodar em camera lenta.
Consegui arrastar a bike por meio quarteirão em
aclive e montei novamente com o volume do ouvido direito mais alto. A coisa ia
ter que ser na garra e na coragem pois no primeiro cruzamento o que deveria ser
uma valeta, já havia um pequeno riacho descendo violentamente na direção
contrária. Senti a água do chão quente, vinda do inferno.
Ignorei os carros e acreditando estar com o pisca
alerta do capacete ligado, me
senti respeitada naquela situação de calamidade pública e não podia esmorecer
tão perto de casa. Os óculos já queria jogar na rua, pois mais atrapalhavam do
que protegiam e faziam-me praguejar enquanto equilibrava a respiração com eles
na boca semi aberta. Obviamente a lei de Murphy tarda mas não falha: assim que virei
a esquina, a chuva veio direto em meus olhos: isso só podia ser castigo.
Pronto, depois de uns 20 minutos brigando com a
chuva, nem ligando mais para o selim molhado deixando a última parte seca de
meu corpo igual a minha alma, estava prestes a descer uma ladeira considerável,
mas que me levaria aos dois últimos quarteirões de minha penosa jornada.
Com cautela desci e com espanto me deparei com
a reta final que me levaria a um belo banho quente: vi que havia um bueiro
levantando água. Parei diante dele, pude ver com a força da água onde estava o
obstáculo da rua, queria tirar uma foto, mas queria mais meu banho quente.
Ganhei alguns metros na rua e tive que parar no
cruzamento de onde pude ver não um, mas dois outros bueiros levantando água em
uma quantidade e força impressionantes. A vontade de tirar outra foto aumentou, aquela
visão era hipnotizante, mas a chuva não deixou e meus pés haviam sumido na água
que corria impiedosa.
Vi carros passando devagar pelo cruzamento, eu
não enxergava a calçada do outro lado, então decidi subir a rua, assim eu
poderia dar a volta e contornar esse cruzamento. Subi pela calçada, mas em
certos momentos pensei em tocar em alguma casa para me esconder da chuva que
castigava a todos que a enfrentavam.
Água fria vinha de cima e água quente vinha
debaixo, comecei a sentir pedaços de gravetos e outras coisas dentro do meu
tenis, fugi do pensamento inquisitivo do que seria aquilo tudo que agora
dividia espaço dentro de meus sapatos ensopados, era como se eu estivesse
descalça.
A água descia com tanta força que precisava
empurrar a bicicleta com muita persistencia para conseguir vencer a corrente
contrária. O que achei que seria fácil, se transformou em um longo martírio, pois o
quarteirão não acabava nunca mais e não sabia quanto mais tinha que subir. Os minutos pareciam horas.
Passei em duas guaritas abadonadas que me
jogaram para trás, pois a força que a água tomava após se desviar aquele
obstáculo enorme era gigantesca. Quando finalmente vi a rua para entrar à
esquerda, quase fui derrubada por um jato que vinha desviado de um poste
incoveniente na esquina.
Subi sentindo a pena nos olhos das pessoas
(secas) dentro dos carros que faziam o caminho inverso ao meu. Subi na
bicicleta e ganhei velocidade, mas ao terminar o quateirão, vi que água alta
não era privilégio do cruzamento que eu havia fugido. Agora estava bem perto e
não poderia desistir.
Já não havia pudor em me molhar ou molhar a
bicicleta: minha alma estava boiando naquele temporal então enfrentei o lago que havia se
formado nesse ultimo cruzamento que me separava de meu banho quente.
Com o pensamento positivo fui novamente para a
calçada onde havia rastro de chão, mas qual minha surpresa quando meus pés
sumiram na água, depois minhas canelas e logo minhas pernas. Não tive dúvidas e
resolvi salvar minha bike a colocando no ombro para passar por aquela banheira
urbana de água quente.
Pela primeira vez olhei em volta e vi um senhor
com a garagem aberta quase em prantos com a água nos joelhos que entrava
impiedosamente em sua casa. Segui firme, já não via meus joelhos e, tateando os portões
caminhava com cautela para não tropeçar: Já nem sentia o peso da bicicleta em
meus ombros.
Quando virei a última esquina e avistei metros
adiante, um pedaço do chão da rua, quase senti a água quente do banho batendo em minhas
costas, mas o que escorria na real era uma água gélida e incômoda. Pensei na
minha mochila, se sobraria algo seco embaixo da super capa do Waters, ironico
waters.
Quando alcancei a rua, ainda pude avisar uma
senhora que observava a rua sem saber se acelerava para o abismo molhado. “não vá
por aí não!”, gesticulei através do vidro fechado. Ela agradeceu e me
presenteou com um olhar piedoso.
Consegui tocar o interfone do prédio em
companhia de uma música agitada do Gottan Project, era quase um sonho ter
chegado.
O estado era lastimável. Dei algumas voltas no
estacionamento subterrâneo antes de guardar a bicicleta para tentar secar um pouco a magrela e, pingando subi pelas
escadas deixando um rastro aguado nos degraus. Quando cheguei no térreo, vi que
a força do vento tinha sido tanta, que havia alagado tudo até os elevadores. Nem ri, nem chorei,
subi mais um lance de escada, ignorando o fato. Joguei tudo no chão, abri a
porta, corri para ligar o aquecedor e finalmente me enfiei debaixo da água quente.
Foram os 40 minutos mais impiedosos que passei
em um percurso que costumo demorar apenas 10 entre o trabalho e minha casa.
Quando saí do banho nem preciso dizer que a
chuva havia passado.
Ê lei de muphy que não falha nunca.