quinta-feira, fevereiro 14, 2013

40 minutos



Estava completamente concentrada na minha pesquisa de final de expediente, quando Mayumi me perguntou se eu estava de bicicleta.
Voltei meus olhos em sua direção, tentando entender sua pergunta e consegui ver, antes dela fechar a porta atrás de si, o céu absolutamente negro.
Gentilmente ela sugeriu que eu saísse de lá, porque a chuva que estava chegando era pesada. Minutos depois, ela se despediu e sumiu pela porta, com certeza pensando chegar logo a algum lugar antes da chuva prometida.
Ela que falou tanto da falta de chuva no Rio durante o carnaval, estava agora fugindo do temporal que se aproximava. Sim, ela havia voltado para a cidade da garoa, ou dilúvios.
Sem pestanejar, desliguei meu computador e me apressei para sair. Por precaução coloquei a capa que havia comprado no show do Roger Waters e nunca havia usado. Não passava pela minha cabeça que eu precisaria de uma capa de verdade e não destas capas transparentes de beira de estádios.
Comecei a pedalar apressadamente e atravessei o Instituto Butantan ainda seca. Os pingos mais grossos começaram a atingir o capacete na descida em direção à Av. Vital Brasil. Logo estaria em casa, então liguei o pisca frontal da bike e o pisca do capacete para não ser atropelada caso a chuva apertasse.
Estava adivinhando, pois mal cheguei na Corifeu, a chuva já entrava pela minha nuca e molhava minha pele quente. Já não podia mais ouvir a música que tentava entrar em meu ouvido direito.
Enfrentei com coragem a avenida cheia de carros apressados; um motoqueiro tirou uma fina muito fina de mim e olhou para trás: ou ele estava impressionado pela minha perserverança naquele crescente de dilúvio, ou algo estava bem errado. E estava: quando cheguei em casa, descobri que o pisca do capacete estava desligado. Eu poderia ter sumido na névoa da ventania e sabe-se lá o que poderia ter acontecido comigo.
Com medo dos raios, observei a incidência de vento e contei as árvores por ali, me tranquilizei e segui firme pela avenida cheia de luzes vermelhas à minha frente.
Em um sinaleiro, aproveitei e mudei do lado direito da rua e fui para o lado esquerdo, que logo menos haveria uma entrada para a praça Elis Regina, refúgio daquela avenida cheia de carros e atalho para casa. Um outro motoqueiro me olhou com compaixão e deu espaço para que eu atravessasse na faixa e esperasse ao lado dele debaixo da cortina grossa de pingos gigantescos.
Quando consegui desviar de uma fiorino que nitidamente ignorava a existência de outros veículos, incluso bicicletas, e finalmente cheguei ao acesso da Elis Regina, parecia que minha roupa pesava 200 quilos e para meu deleite, encontrei outro sinal fechado. Aproveitei para beber água, embora parecesse redundante naquele momento visto que o único lugar que não estava encharcado era meu estomago. Já não me importava mais com a água, queria era mesmo chega logo ao meu destino.
O sinal abriu e me vi disputando um pedaço de asfalto com os  carros. "Ei, você não está vendo que estou encharcada e voce está seco aí dentro?”. Comecei a lutar contra o vento na contramão. A coisa começou a ficar emocionante demais para meu gosto.
O capuz da capa Roger Waters há muito já havia voado, e eu estava preocupada se o pisca  do capacete ainda funcionava – mal sabia eu que estava desligado. “presta atenção! estes carros não querem nem saber, vai pra tua mão que há uma subida poucos metros.”
Respirei fundo e, contra o vento, os carros, os pingos pesados do temporal, me rendi. Olhei para a bike guerreira e dei um descanso a ela e à minha alma. Porque fiz isso não sei, pois ao começar a andar ao lado da bike, parece que o filme começou a rodar em camera lenta.
Consegui arrastar a bike por meio quarteirão em aclive e montei novamente com o volume do ouvido direito mais alto. A coisa ia ter que ser na garra e na coragem pois no primeiro cruzamento o que deveria ser uma valeta, já havia um pequeno riacho descendo violentamente na direção contrária. Senti a água do chão quente, vinda do inferno.
Ignorei os carros e acreditando estar com o pisca alerta do capacete ligado,  me senti respeitada naquela situação de calamidade pública e não podia esmorecer tão perto de casa. Os óculos já queria jogar na rua, pois mais atrapalhavam do que protegiam e faziam-me praguejar enquanto equilibrava a respiração com eles na boca semi aberta. Obviamente a lei de Murphy tarda mas não falha: assim que virei a esquina, a chuva veio direto em meus olhos: isso só podia ser castigo.
Pronto, depois de uns 20 minutos brigando com a chuva, nem ligando mais para o selim molhado deixando a última parte seca de meu corpo igual a minha alma, estava prestes a descer uma ladeira considerável, mas que me levaria aos dois últimos quarteirões de minha penosa jornada.
Com cautela desci e com espanto me deparei com a reta final que me levaria a um belo banho quente: vi que havia um bueiro levantando água. Parei diante dele, pude ver com a força da água onde estava o obstáculo da rua, queria tirar uma foto, mas queria mais meu banho quente.
Ganhei alguns metros na rua e tive que parar no cruzamento de onde pude ver não um, mas dois outros bueiros levantando água em uma quantidade e força impressionantes. A vontade de tirar outra foto aumentou, aquela visão era hipnotizante, mas a chuva não deixou e meus pés haviam sumido na água que corria impiedosa.
Vi carros passando devagar pelo cruzamento, eu não enxergava a calçada do outro lado, então decidi subir a rua, assim eu poderia dar a volta e contornar esse cruzamento. Subi pela calçada, mas em certos momentos pensei em tocar em alguma casa para me esconder da chuva que castigava a todos que a enfrentavam.
Água fria vinha de cima e água quente vinha debaixo, comecei a sentir pedaços de gravetos e outras coisas dentro do meu tenis, fugi do pensamento inquisitivo do que seria aquilo tudo que agora dividia espaço dentro de meus sapatos ensopados, era como se eu estivesse descalça.
A água descia com tanta força que precisava empurrar a bicicleta com muita persistencia para conseguir vencer a corrente contrária. O que achei que seria fácil, se transformou em um longo martírio, pois o quarteirão não acabava nunca mais e não sabia quanto mais tinha que subir. Os minutos pareciam horas.
Passei em duas guaritas abadonadas que me jogaram para trás, pois a força que a água tomava após se desviar aquele obstáculo enorme era gigantesca. Quando finalmente vi a rua para entrar à esquerda, quase fui derrubada por um jato que vinha desviado de um poste incoveniente na esquina.
Subi sentindo a pena nos olhos das pessoas (secas) dentro dos carros que faziam o caminho inverso ao meu. Subi na bicicleta e ganhei velocidade, mas ao terminar o quateirão, vi que água alta não era privilégio do cruzamento que eu havia fugido. Agora estava bem perto e não poderia desistir.
Já não havia pudor em me molhar ou molhar a bicicleta: minha alma estava boiando naquele temporal então enfrentei o lago que havia se formado nesse ultimo cruzamento que me separava de meu banho quente.
Com o pensamento positivo fui novamente para a calçada onde havia rastro de chão, mas qual minha surpresa quando meus pés sumiram na água, depois minhas canelas e logo minhas pernas. Não tive dúvidas e resolvi salvar minha bike a colocando no ombro para passar por aquela banheira urbana de água quente.
Pela primeira vez olhei em volta e vi um senhor com a garagem aberta quase em prantos com a água nos joelhos que entrava impiedosamente em sua casa. Segui firme, já não via meus joelhos e, tateando os portões caminhava com cautela para não tropeçar: Já nem sentia o peso da bicicleta em meus ombros.
Quando virei a última esquina e avistei metros adiante, um pedaço do chão da rua, quase senti a água quente do banho batendo em minhas costas, mas o que escorria na real era uma água gélida e incômoda. Pensei na minha mochila, se sobraria algo seco embaixo da super capa do Waters, ironico waters.
Quando alcancei a rua, ainda pude avisar uma senhora que observava a rua sem saber se acelerava para o abismo molhado. “não vá por aí não!”, gesticulei através do vidro fechado. Ela agradeceu e me presenteou com um olhar piedoso.
Consegui tocar o interfone do prédio em companhia de uma música agitada do Gottan Project, era quase um sonho ter chegado.
O estado era lastimável. Dei algumas voltas no estacionamento subterrâneo antes de guardar a bicicleta para tentar secar um pouco a magrela e, pingando subi pelas escadas deixando um rastro aguado nos degraus. Quando cheguei no térreo, vi que a força do vento tinha sido tanta, que havia alagado tudo até os elevadores. Nem ri, nem chorei, subi mais um lance de escada, ignorando o fato. Joguei tudo no chão, abri a porta, corri para ligar o aquecedor e finalmente me enfiei debaixo da água quente.
Foram os 40 minutos mais impiedosos que passei em um percurso que costumo demorar apenas 10 entre o trabalho e minha casa.
Quando saí do banho nem preciso dizer que a chuva havia passado.
Ê lei de muphy que não falha nunca.