As marcas da noite dura, mal dormida, gemendo no corpo cansado.
Com os olhos ainda marcados de sono, escutar os tilindar dos grilos noturnos causa o adiamento do despertar- o corpo pede descanso.
o dia finalmente amanhece e com ele a inadiável tarefa do caminhar.
Amanhecer, espreguiçar, cheiro de café, saltar da cama, ruído, gente, cachorro e sobre nossas cabeças, o céu estupidamente azul desafiando a dificil tarefa.
Tudo preparado: proteção contra o rei-sol, na mochila somente o necessário, hidratação para o corpo e coragem para a alma.
Os primeiros passos silenciosos dão início a longa caminhada sofrida na mente, mas pouco sentida nos músculos. A sombra dos grandes cajueiros ameniza os passos na areia fofa até o mata-burro.
Casas dos nativos começam a pipocar ao longo do caminho distraindo a vista enquanto o sol abraça o corpo decidido.
Ultima curva de areia branca, últimas casas. Muito ja foi caminhado. As chances de conseguir um último copo de água para o corpo em marcha estão findando, mas o ritmo não diminui e a possibilidade de alguma parada é descartada.
Depois de um pequeno cruzamento, sinais de veículos motorizados na estrada de areia ofuscante: uma moto típica na região e um automóvel de passeio trazendo consigo a estranheza por se diferenciar dos carros propícios ao chão difícil.
Sigo em silêncio, a frente a estrada de terra batida deixa a areia fofa para trás, enchendo os olhos com a paisagem bucólica a perder de vista.
Sigo em companhia de mim mesma.
Meus pés são meu transporte.
Minha mente minha asas.
Olho para a estrada e abandono as sandálias, sinto o sol, sinto a terra, sinto o chão. Os pedregulhos machucam as solas calejadas, mas logo se tornam brincadeira de sensações táteis.
Sem vento, escuto minha respiração e deixo o sol me abraçar cada vez mais forte. Olho novamente para os meus pés e vejo um caminhar seguro pelo chão vermelho e seco. Levanto os olhos e o verde abraça as vacas que ruminam ignorantes de minha presença.
Quebro o silêncio ao cumprimentar o menino que atravessa a estrada sem tirar os olhos dessa curiosa figura que caminha estrada afora. Apenas os dois: ele na lida com a res, e ela rumando para o horizonte. Uma troca de olhares, uma palavra amiga e nunca saberei seu nome nem do que gosta. Um breve cumprimento que quebra o silêncio cansado do caminhar obstinado.
Sigo dentro de mim e vejo muito espaço, dentro e fora.
O balançar dos braços se torna anestesiado pelas incontáveis vezes que o movimento se repete. Já nem ligo para as gotas de suor que insistem em cair. O caminhar se torna gentil e a mente flutua por entre os contundentes raios de sol. Nao sinto mais a dor da ferida na perna que custa a sarar.
Pouco a pouco o ar muda de cor e avisto o primeiro telhado. Reconheço a primeira casa e custo a acreditar que quilometros foram cobertos e não foram sentidos.
Não vejo alma viva até ganhar a pequena vila onde aos poucos encontro movimento.
Caminho icognita mas nao passo desapercebida.
Observo meninas que saem de uma porta de madeira pintada da estrada e reconheço um rosto. Quebro o silêncio com palavras de proximidade.
Me devolvem sorrisos e passos apressados.
Concentro-me na casa conhecida. Passo o portão e chamo, ninguém aparece.
Um rosto aponta na janela. Com o reconhecimento, um sorriso.
Acolhida em uma velha cadeira a beira do fogão à lenha, tomo café com crianças festivas a minha volta.
Escuto histórias contadas na difícil linguagem local, quase incompreensível a ouvidos desacostumados.
Paradoxalmente me sinto em casa e ao mesmo tempo sinto-me à parte desse mundo rústico.
Meus olhos giram embriagados com o que veem: crianças correndo, cacimba cheia, o causo da filha que quase morreu, a horta, o banheiro longe da casa, as redes penduradas, a criança que come sardinha na brasa de café da manhã, a mãe que me sorri oferecendo mais uma xícara de café.
Essa linda troca humana.
Até eu me levantar e começar a próxima caminhada.
Um comentário:
Ai ai ai...mas cadê o Lucão? Perdeu ele de novo?
Lindas suas narrativas, querida!
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