segunda-feira, julho 17, 2006

pés no chão

As marcas da noite dura, mal dormida, gemendo no corpo cansado.
Com os olhos ainda marcados de sono, escutar os tilindar dos grilos noturnos causa o adiamento do despertar- o corpo pede descanso.
o dia finalmente amanhece e com ele a inadiável tarefa do caminhar.
Amanhecer, espreguiçar, cheiro de café, saltar da cama, ruído, gente, cachorro e sobre nossas cabeças, o céu estupidamente azul desafiando a dificil tarefa.
Tudo preparado: proteção contra o rei-sol, na mochila somente o necessário, hidratação para o corpo e coragem para a alma.
Os primeiros passos silenciosos dão início a longa caminhada sofrida na mente, mas pouco sentida nos músculos. A sombra dos grandes cajueiros ameniza os passos na areia fofa até o mata-burro.
Casas dos nativos começam a pipocar ao longo do caminho distraindo a vista enquanto o sol abraça o corpo decidido.
Ultima curva de areia branca, últimas casas. Muito ja foi caminhado. As chances de conseguir um último copo de água para o corpo em marcha estão findando, mas o ritmo não diminui e a possibilidade de alguma parada é descartada.
Depois de um pequeno cruzamento, sinais de veículos motorizados na estrada de areia ofuscante: uma moto típica na região e um automóvel de passeio trazendo consigo a estranheza por se diferenciar dos carros propícios ao chão difícil.
Sigo em silêncio, a frente a estrada de terra batida deixa a areia fofa para trás, enchendo os olhos com a paisagem bucólica a perder de vista.
Sigo em companhia de mim mesma.
Meus pés são meu transporte.
Minha mente minha asas.
Olho para a estrada e abandono as sandálias, sinto o sol, sinto a terra, sinto o chão. Os pedregulhos machucam as solas calejadas, mas logo se tornam brincadeira de sensações táteis.
Sem vento, escuto minha respiração e deixo o sol me abraçar cada vez mais forte. Olho novamente para os meus pés e vejo um caminhar seguro pelo chão vermelho e seco. Levanto os olhos e o verde abraça as vacas que ruminam ignorantes de minha presença.
Quebro o silêncio ao cumprimentar o menino que atravessa a estrada sem tirar os olhos dessa curiosa figura que caminha estrada afora. Apenas os dois: ele na lida com a res, e ela rumando para o horizonte. Uma troca de olhares, uma palavra amiga e nunca saberei seu nome nem do que gosta. Um breve cumprimento que quebra o silêncio cansado do caminhar obstinado.
Sigo dentro de mim e vejo muito espaço, dentro e fora.
O balançar dos braços se torna anestesiado pelas incontáveis vezes que o movimento se repete. Já nem ligo para as gotas de suor que insistem em cair. O caminhar se torna gentil e a mente flutua por entre os contundentes raios de sol. Nao sinto mais a dor da ferida na perna que custa a sarar.
Pouco a pouco o ar muda de cor e avisto o primeiro telhado. Reconheço a primeira casa e custo a acreditar que quilometros foram cobertos e não foram sentidos.
Não vejo alma viva até ganhar a pequena vila onde aos poucos encontro movimento.
Caminho icognita mas nao passo desapercebida.
Observo meninas que saem de uma porta de madeira pintada da estrada e reconheço um rosto. Quebro o silêncio com palavras de proximidade.
Me devolvem sorrisos e passos apressados.
Concentro-me na casa conhecida. Passo o portão e chamo, ninguém aparece.
Um rosto aponta na janela. Com o reconhecimento, um sorriso.
Acolhida em uma velha cadeira a beira do fogão à lenha, tomo café com crianças festivas a minha volta.
Escuto histórias contadas na difícil linguagem local, quase incompreensível a ouvidos desacostumados.
Paradoxalmente me sinto em casa e ao mesmo tempo sinto-me à parte desse mundo rústico.
Meus olhos giram embriagados com o que veem: crianças correndo, cacimba cheia, o causo da filha que quase morreu, a horta, o banheiro longe da casa, as redes penduradas, a criança que come sardinha na brasa de café da manhã, a mãe que me sorri oferecendo mais uma xícara de café.

Essa linda troca humana.

Até eu me levantar e começar a próxima caminhada.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ai ai ai...mas cadê o Lucão? Perdeu ele de novo?

Lindas suas narrativas, querida!